Quando encontrarem esta carta, estarei morto.
Ontem foi uma noite bastante normal, era quinta á noite e não tinha que trabalhar no jornal por isso decidi ir a uma festa do Thompson. Bêbado, mimado e ignorante, o Thompson não é realmente uma personagem muito agradável, de facto é bastante irritante vê-lo rodeado de mulheres bonitas e gangsters poderosos desejosos de cair nas suas boas graças quando nunca fez realmente muito para o merecer, é dinheiro velho o Thompson. Claro que não é esse tipo de dinheiro velho, não dá aquelas festas enfadonhas só com gente de sangue azul, as festas da aristocracia são tão século passado… De facto, é por isso que é tão popular, dá sempre umas festas fantásticas, grandes e com imensa gente bonita. É por isso que o suporto, ele dá festas grandes e eu gosto delas porque nas festas pequenas não há privacidade.
Eram nove horas da noite quando cheguei á casa dele, queria chegar mais tarde para poder exibir o meu carro novo, claro que um jornalista não teria dinheiro para comprar um carro daqueles, mas tinham-me dado umas dicas muito interessantes sobre umas acções que estavam prestes a subir.
A casa era sem duvida um verdadeiro aborto, quadrada e enorme era o tipo de casa feita por pessoas sem absolutamente gosto nenhum com base apenas nas “modas” actuais. Claro que se me perguntassem eu diria que era moderna, vanguardista e verdadeiramente inspiradora evitando usar palavras como horrenda. Mas por dentro, ah, aí já era outra coisa, a sala estava decorada com móveis de materiais caros coloridos em amarelo, esmeralda e vermelho com frutas, bombons e vinho espalhados pelas mesas e um grande piano na sala. O vinho era, claro, cortesia de Mr. Al Capone, sentado com a sua cara de bebé sorridente em cima do peito de uma flapper loira enquanto conversava com os seus capangas de zoot suits.
Estava lá toda a gente, as bonitas figurantes das óperas da cidade, os políticos corruptos e os homens e mulheres pobres ricos, infelizes e despreocupados, velhos e novos ou tudo o que estava no meio.
-Nicky! - Thompson vinha na minha direcção já vermelho da bebida e acompanhado por Fiztpatrick, o tesoureiro da cidade, gordo e com uns olhos pequenos malvados e o pouco cabelo ruivo, Fitz (para os amigos) era quase uma caricatura viva do político corrupto, se olhassem com atenção quase se podia ver o dinheiro a cair-lhe dos bolsos do casaco caro e italiano.
-Nick – sorriu e apertou-me a mão, conhecia bem o valor de ter um amigo jornalista, era ele a razão pela qual eu tinha sequer dinheiro para investir na bolsa. É que a mim não me interessa dar a conhecer as histórias e a corrupção ao povinho, eu faço por ganhar o meu e os outros que se amanhem. Ou acham que é fácil ser o Nick Boleyn, o italiano, o jornalista, o insignificante Nick Boleyn? Sou um self-made man e não tenho vergonha disso.
-Ouvi de fonte segura que vamos ganhar uns cobres na bolsa amanhã.- diz enquanto me pisca o olho e me põe o braço á volta dos ombros, não gosto deste tipo de liberdades que tipos como o Thompson tomam ao agirem como se fossemos grandes amigos quando há um ano, ele nem na rua me cumprimentaria.
-Oh sim, isto da bolsa é fantástico, mas também tem um lado mau.- olhei para trás para ver quem falava, era o insuportável e snob Hugh Holland- Veja só, agora qualquer imigrante rafeiro com sorte pode enriquecer e misturar-se com a alta sociedade.
As palavras tinham sido ditas com um tom tão mesquinho e deliciado que decidi que só estaria a dar-lhe demasiada atenção se respondesse. Hugh Holand não tem qualquer problema em que Thompson convide para as festas flappers que há um ano atrás não passavam de miúdas do campo, nem negros se só forem lá para servir ás mesas e tocar jazz mas convidar judeus e italianos e tratá-los como iguais? Só podem estar a brincar, os pais e avós dele não criaram este país para que andasse agora algum imigratezeco rafeiro a dar cabo disto.
Foi então que aconteceu, vi-os aos segredinhos, com ares de grande preocupação e o mordomo habitualmente calmo de Thompson muito vermelho e suado. Claro que fui o único a reparar, nenhum destes idiotas repara nos criados, mas eu ignorei-os e continuei a minha vida.
Falei com outros jornalistas, políticos e namorisquei com uma cantora de um cabaret muito famoso conhecida apenas por Dalilah que Thompson me apresentou, até disse uma ou duas palavras a Mr. Al Capone quando este me pediu um cigarro.
É claro que ouvi Thompson, toda a gente ouviu Thompson gritar:
-Por amor de deus Michael! Vieste-me incomodar com isso, que são umas centenas de dólares para alguém como eu?- toda a gente se riu de forma snobe e falsa. Um hahaha pronunciado quase foneticamente.
-Senhor não compreende, não foi…
-Pira-te Michael, estás despedido…
O rosto redondo do velho Michael empalideceu.
-Desculpe, senhor?
-Estás despedido velhote, põe-te a andar, a ultima coisa de que preciso é de um profeta da desgraça na minha casa.
Michael desapareceu, a andar muito lentamente com uma expressão de fantasma na cara e ficou na sala um silêncio desconfortável face àquela cena constrangedora, até a banda parara de tocar.
-De que estão á espera continuem.
Thompson dirigiu-se de novo ao grupo com quem falava grupo que era constituído por mim, Fitz, Mr.Holland e a sua bonita e calada mulher Sarah, que era dinheiro velho, mas de dinheiro a família dela tinha pouco.
-Idiota, sabes o que me disse? Que as acções tinham vindo abaixo!
Parei de respirar, ao ver o meu ar preocupado Thompson riu e voltou a pôr-me o braço no ombro.
-Está tudo bem, Nicky, amigo. As acções caíram um bocadinho, e depois, depressa voltas a recuperar o dinheiro!
-Céus, Thompson, você não tem mesmo nada na cabeça pois não?- todos olhámos para ver de onde vinha aquela voz feminina e acabámos por verificar espantados, que era Sarah quem falava.
-Sabe ao menos como funciona a bolsa?- Thompson ficou algum tempo de boca aberta, ainda chocado mas acabou por acenar que não – Tal como eu suspeitava, pois eu sei, tenho um primo que trabalha lá em Wall Street e vocês andam a brincar com o fogo. As acções têm vindo a descer desde 25, mas os investidores aumentaram, toda a gente quer um pedaço do “American Way of Life”. Qualquer desequilíbrio pode mandar aquilo tudo abaixo, é só uma questão de tempo e não Thompson, não falamos de centenas, nem sequer falamos de milhares, falamos de milhões de dólares.
Toda a gente estava calada a ouvi-la, uma expressão não apenas de terror mas de puro pânico marcava cada rosto na sala, mesmo os dos empregados e das flappers cabeças de vento. Bem, todos excepto o de Holland que olhava para a mulher como se nunca tivesse estado mais apaixonado por ela.
Escusado será dizer que fomos todos cedo para casa nessa noite, céus, a Holland sabia mesmo como arruinar uma festa. Embora as palavras dela me tivessem chocado no momento, adormeci completamente convencido de que tinha sido apenas uma pequena queda e que Sarah era uma fatalista insuportável.
Por isso quando acordei na sexta-feira, eu estava apenas levemente curioso sobre o que se passara na noite anterior e como tal fui ter com Thompson. Primeiro, espantou-me o facto de, pelo menos por fora a casa estar deserta, mesmo durante o dia as pessoa juntavam-se á volta de Thompson como moscas em volta da merda.
Bati á porta á espera de ver Michael que teria implorado pelo emprego de volta mas quem ma abriu foi Dalilah.
-Que raio estás tu a fazer aqui?
Fiquei ofendido com tão brusca recepção de uma mulher que se mostrara tão amigável na noite anterior.
-Bem, vim saber como ficou aquilo de ontem á noite da bolsa.
Desviei o olhar de Dalilah, á noite ela era um deusa com o seu vestido de lantejoulas e o seu cabelo curto encaracolado mas agora, com os olhos profundamente marcados por olheiras, sem maquilhagem e com o cabelo desgrenhado estava realmente feia.
-Estás a rir-te, achas que isto é uma piada? – ao ver o meu ar ofendido e inocente mudou imediatamente de tom – Oh, querido, tu não sabes pois não? Tu não sabes mesmo!
-Dalilah, o que se passou?
-Entra, amor, toma uma bebida, vais precisar.
Quando entrei vi uma casa irreconhecível, tudo o que ontem parecera fabuloso hoje parecia decadente, sujo e triste.
Thompson tinha o roupão aberto a deixar mostrar a barriga flácida, Martha a filha ilegítima que tinha com Dalilah ao colo e os seus velhos pais sentados numa poltrona com ar de quem estava perto de uma trombose. Os Holland, por sua vez pareciam completamente á vontade e até satisfeitos.
-Graças a deus que pelo menos tu não me abandonaste! – Thompson parecia quase delirante.
-Ele ainda não sabe, querido. – disse Dalilah pondo uma mão no ombro de Thompson.
Ao ver aquilo perdi completamente o controlo.
-Mas alguém me pode dizer o que raio se passa aqui?
-É o fim do mundo, Nicky. – Respondeu-me Thompson num tom calmo.
-Foi o crash – explicou Hugh Holland- Perdeu tudo e não foi o único, que eu saiba quase toda a gente ficou afectada, até a criadagem mas ouve gente que tinha lá todas as suas poupanças. Ninguém consegue vender nada, andam banqueiros a tentar voar. Felizmente eu e a Sarah nunca confiámos nessas coisas, não foi, querida?
Sarah acenou alegremente.
Sentei-me, Dalilah serviu-me um whisky com uma expressão de pena a desfigurar-lhe o rosto e agarrou-se depois á filha abraçando e beijando possessivamente a criança que parecia incapaz de perceber o que se estava a passar.
-Tenho de ir á ligar ao meu irmão. – Thompson disse isto de num tom de voz decidido, nenhum de nós contestou, continuámos ali agarrados ao nosso próprio desespero, á espera que algo, alguém nos dissesse que era só uma brincadeira.
Foi então que ouvimos o barulho, o barulho de algo a cair ao chão lá em cima no escritório.
Corremos pelas escadas acima mas quando chegámos lá era demasiado tarde, no meio dos papéis e livros, jazia Thompson pendurado num fio como uma aranha.
Não sei bem como saí dali, sei que consegui de alguma maneira passar pela polícia e pelos curiosos e me encontro aqui, no meu quarto com o sabor de whisky e do metal frio na minha boca sem saber o que fazer.
As expressões ecoam na minha cabeça “todas as suas poupanças”, “o fim do mundo”. Tenho duas opções, deixo este mundo, este mundo que de qualquer maneira acabou e no qual me habituei a viver ou roubo, minto e engano o meu caminho de volta á prosperidade como tantas vezes fiz?
Morrer ou viver, eis a questão. Mas esse é o meu fardo não o vosso e se encontrarem esta carta, bem, será muito óbvio a decisão que tomei.
Sempre vosso,
Nicky Boleyn
Verónica