Capitulo III- 2ªparte
E depois foi a minha vez, depois da borboleta monarca e da viúva negra chega a vez do insecto cinzento.
-E esta é a nossa filha adoptada, a Joana. – a frase é dita na total ausência de um sorriso. A D.Sara acena, o marido continua a beber.
A festa continuou, a D.Sara falou com a Joana acerca do colégio porque tem um filho com a idade dela que também lá anda e gostava de saber se ela o conhece.
Eu fui para a casa de banho, não para a casa de banho de serviço mas para a do piso de cima.
Vi-me ao espelho e de repente odiei tudo acerca de mim, apercebi-me das minhas borbulhas. Quando me imagino, nunca me imagino com borbulhas e imagino-me leve e ágil, quase sem corpo. Mas não é assim que sou, sou gorda, tenho acne, tronco em forma de barril, peito liso e um cabelo castanho desgrenhado, sem ser liso nem ondulado. Deslizei as mãos para as borbulhas do meu peito quando ouvi alguém bater á porta.
-Joana, estás aí?- a voz era rouca, masculina e hesitante. Era o Rui.
-Estiveste a chorar?- só na altura me apercebi que tinha lágrimas a escorrer-me pela cara.
-Sim.
-Porquê?
-É uma coisa parva, esquece. – Respondi enquanto limpava a cara ao casaco – Preciso que me passes uma justificação para hoje.
O Rui não fez perguntas, nunca faz, limita-se a acenar. Reparei no copo na mão dele, estava bêbado, qualquer dia está igual ao meu pai. Durante algum tempo nenhum de nós disse nada, fica-mos ali, a olhar um para o outro com as vozes e os risos como banda sonora. O Rui é…
Bem, não há maneira de ser delicada em relação a isto, ele é o homem que dorme com a minha mãe.
Eu sei, é estranho. Seria ainda mais estranho se o conhecesses.
O Rui é alto e deve ter sido magro em novo mas recentemente ganhou uma barriga de cerveja, tem o cabelo encaracolado e preto muito curto e óculos rectangulares.
Não é um homem feio, mas não é homem para a minha mãe. Já para não dizer que deve ser uns cinco anos mais novo que ela. Cinco anos não é muito tempo mas a minha mãe e o Rui são, visivelmente, duas pessoas em estados de vida completamente diferentes. Um solteiro e uma mulher de família, um médico e um executiva, um excêntrico e uma beleza, um homem em inicio de carreira e uma mulher que chegou ao topo.
A minha mãe, Isabel, cresceu na parte mais cara da nossa cidade, é filha única de um casal abastado e elitista e frequentou o mesmo colégio privado que nós, um dos mais prestigiados do país. O Rui passou os primeiros anos da sua vida num prédio cosmopolita, a ler os livros de medicina da biblioteca do pai e a dissecar pequenos animais. Quando tinha dez anos, os pais conseguiram a muito sacrifício, inscrevê-lo no nosso colégio. No terceiro dia de aulas viu a Isabel (esta história foi-me relatada por ele, se bem que numa versão muito mais metódica e abreviada, porque o próprio Rui é assim). Era a rapariga mais bonita que já tinha visto, tinha o cabelo loiro e macio como seda e um rosto com a serenidade e a regularidade do das estátuas gregas. Os olhos eram azuis e transmitiam… Bem, não transmitiam nada, eram vazios e translúcidos, como a água. Usava um vestido de alças, branco e rendado que contrastava com a pele sardenta e morena. Durante algum tempo, ele limitou-se a ficar ali parado, a observar a maneira como a boca dela se mexia quando falava, como o cabelo dela lhe roçava no ombro. Ele nunca se tinha apaixonado, sempre pensara que era demasiado racional para isso e a mãe dizia-lhe que ainda era muito novo. Passou os dois anos seguintes a observá-la de longe, era uma rapariga popular, como alguém assim tinha de ser e raramente se encontrava sem namorado. Não era muito inteligente, pelo menos não era o tipo de inteligência que lhe garantisse boas notas. Era uma esperteza, uma sabedoria de viver, um certo carisma, algo especial, algo só dela, algo tão leve como o nome…
Era Isabel.
E era o último ano dela na escola, era agora ou nunca, por isso, um dia, estava a ela a estudar com as outras amigas, envergonhada pela sua falta de perícia nos estudos (pois não estava, claramente, habituada a ser má em alguma coisa), ele falou com ela.
A matéria que ela estudava era, para ele, tão fácil como uma brincadeira infantil. E Isabel deixou-o explicar, divertida por aquele génio em miniatura, que tentava, de uma maneira tão desajeitada que se tornava amorosa, interessá-la nele.
A partir desse dia, Rui começou a dar explicações a Isabel. Raramente falavam de algo a não ser da matéria pois não tinham, realmente, nada em comum, mas havia alguma coisa, uma proximidade, um toque, uma piada ocasional que denunciava a cumplicidade que ia crescendo entre eles. No último dia de explicações, apenas porque não tinha nada a perder, ele beijou-a. Ao contrário do que estava á espera, ela não ficou chocada. Limitou-se a rir.
O Rui diz que foi o momento mais humilhante da vida dele, quando ela se riu. Mas só durou um segundo antes de ela o beijar de volta.
E foi a última vez que a viu em doze anos.
Quando tinha vinte e quatro anos houve uma conferência em Nova York, dada por um investigador que conhecia e admirava. Rui começara recentemente a trabalhar, precisava de uma pausa dos horários esclavagistas e do muco dos pacientes. Queria seguir psiquiatria mas tinha que passar pelo internato primeiro…
Precisava de uma pausa.
Foi então que a viu, tão bonita como sempre, ou até mais se possível, a passagem dos anos definira-lhe as maçãs do rosto e o corpo ganhara formas mais femininas.
Não sei o que aconteceu a seguir, o Rui poupou-me aos detalhes. Mas facto comprovado é o de eles terem passado os dois dias seguintes num quarto de hotel em Nova York.
Na manhã de segunda-feira, Isabel estava vestida e pronta para sair quando se inclinou para ele e lhe deu um beijo. E foi com um sorriso nos lábios e uma voz doce que lhe disse:
-Sou casada.
E, bem, catorze anos depois, aqui estamos nós. Quase exactamente na mesma.
-Não respondes-te á minha pergunta. Porque estás a chorar? – sente-se o cheiro do álcool cada vez que ele fala.
Ele não está a tentar pressionar-me, nem meter-se na minha vida, está só preocupado comigo.
-Tive um dia mau na escola e depois houve esta… O que é esta merda afinal? Uma festa, um jantar de negócios, um banquete romano?
-Sabes que não gosto de te ouvir falar assim.
Não me controlei, bati-lhe. Bati-lhe e depois abracei-o com tanta força quanto conseguia, como se ele fosse o universo e realidade que parece escapar-me cada vez mais. O Rui não reagiu imediatamente, não está habituado a contacto físico, mesmo quando está com a minha mãe limita-se a olhar para ela como se fosse o sol, nunca toma a iniciativa de lhe tocar. Mas depois de algum tempo ele abraça-me de volta e toca-me no cabelo, como nunca o vi fazer á minha mãe, como nunca o vi fazer a ninguém.
Não sei bem explicar o que aconteceu a seguir, só sei que o beijei. Meu deus, até tu que és um insecto me estás a olhar com desprezo. Não foi de propósito, pelo menos não fui eu, a Joana que o fiz. Foi aquela parte de mim, aquela que quer magoar a minha mãe, que não quer mais nada no mundo do que fazê-la sofrer.
Foi ela que o beijou e que fez…
Bem, tudo aquilo que veio a seguir.
Verónica
Verónica