Eu fui uma criança solitária. De certa forma continuo a ser, embora já não me considere bem uma criança.
Costumava sentar-me no cadeirão na cozinha da casa da minha avó a respirar o cheiro das bolas doces da manhã de Natal e a ouvir a missa na televisão. E por vezes, muitas na realidade, a minha avó sentava-se perto de mim e contava-me histórias. Não eram o tipo de histórias que se contam a uma criança antes de dormir, não era o capuchinho vermelho nem a bela adormecida. Eram histórias da bíblia. Histórias seleccionadas e adaptadas é claro, mas mesmo assim, histórias da Bíblia. E para dizer a verdade, eu gostava muito mais delas do que de qualquer outra história que me pudessem contar. Foi isso que fez de mim, nos primeiros anos da minha vida, uma católica devota. Ouvia atentamente a minha avó quando ela me ensinava as diferentes orações, mas a verdade é que quase nunca usei nenhuma delas, era isso que eu não percebia, se deus existia porque não podia eu ter uma conversa com ele? Porque tinha eu de repetir incessantemente palavras que tantos outros tinham pronunciado antes de mim e que tinham muito pouco significado real? Por isso limitava-me a falar com deus, tal como falaria com um pai ou com um amigo. Falava com ele sobre os mais variados temas, sobre o medo que tinha que a minha tia perdesse o emprego ou que os meus avós morressem e até sobre os meus amigos e as minhas notas na escola. Falava com ele especialmente naqueles momentos á noite em que esperava que a minha tia me viesse ler uma história (ainda não sabia ler e já começava a exigir livros religiosos ilustrados e enciclopédias infantis sobre religião) e mesmo com aquele silêncio avassalador não me sentia sozinha.
A existência de Deus era um facto garantido para mim, nunca o pus em causa. No ano em que entrei para a escola a meio de uma conversa um colega meu acabou por dizer:
-Eu não acredito em Deus. – fiquei completamente chocada, sabia que era possível acreditar-se num deus diferente mas não sabia que era possível não se acreditar em deus nenhum.
-Então em que acreditas?
-Sei lá, na natureza? – O miúdo era sem dúvida novo demais para acreditar ou deixar de acreditar em alguma coisa mas fora provavelmente criado num lar de ateus e absorvera a crença tão ferozmente como eu absorvera a do catolicismo.
Para mim, esse foi um ponto de mudança, foi a altura em que percebi que era possível ter uma crença diferente da minha. Mas a mudança real chegou quando eu andava no quinto ou no sexto ano. Adorava Ciências (gosto que se foi deteriorando quando o meu professor arranjou emprego noutra escola) e nunca achei que isso interferisse com as minhas crenças religiosas mas ultimamente andava chateada. Tinha onze anos, estava a mudar, as roupas que a minha mãe escolhia para mim pareciam-me desajustadas e desconfortáveis e toda a gente (incluindo os meus professores) me gozava por causa do meu cabelo, que me cobria quase totalmente o rosto. Os únicos momentos de felicidade que conhecia eram andar á porrada com os rapazes e no caso de me magoar, era sempre eu que era culpada. De repente, quando o meu professor falava da teoria do big bang nas aulas e explicava como isso podia coexistir com deus só me apetecia dizer:
-Não, não pode. São duas ideologias completamente diferentes! Você é o tipo de pessoa que só acredita em deus porque lhe dá jeito. Tenta concentrar-se em coisas como o jantar de amanhã e o horário das novelas só para não ter de se perguntar o que raio estamos nós a fazer aqui! – Nunca me ocorreu que talvez o meu professor de ciências não quisesse partilhar as suas dúvidas existenciais com um bando de miúdos de onze anos.
Mas ainda não acreditava nisso, não realmente, mesmo com todas as provas científicas do contrário, mesmo com as atrocidades que a igreja cometera ao longo dos tempos (que só agora me eram apresentadas) e com a minha recém-descoberta de que quase tudo era pecado, eu acreditava em deus. Acreditava pelo motivo mais importante, porque continuava a senti-lo lá, apesar minha ruptura definitiva com a igreja ter vindo mais cedo nesse ano. Tinha começado a catequese há poucas semanas quando se apoderou de mim um ódio horrível á igreja católica. No primeiro dia de catequese assistira á missa, o padre lera passagens da bíblia de que hoje já não me consigo lembrar mas lembro-me de que me transmitiram uma sensação tão grande de carinho, segurança e amor que acabei por começar a chorar. Na semana seguinte os meus catequistas imbecilmente perguntaram do que tínhamos gostado mais na missa. Todos os miúdos responderam coisas adoráveis como:
-Da musica!
-Das cores do fato do senhor padre!
-Do sitio onde a hóstia estava porque fazia lembrar uma bola de futebol! – Não posso afirmar que essas tenham sido as palavras exactas, mas juro que havia uma bola de futebol envolvida.
Quando chegou a minha vez respondi:
-Das palavras do padre. – o queixo do meu catequista caiu até ao chão antes de perguntar:
-Estás a falar a sério?
-Sim, o senhor padre falou de - E á medida que ia falando percebi que aquele imbecil não ouvira uma única palavra que fora dita na missa.
E foi assim que, com onze anos perdi a minha fé na igreja e em deus, mas principalmente nos adultos e na humanidade em geral. E há medida que as semanas se foram passando e eles nos continuavam a condescender com teatrinhos e actividades parvas que não me ensinavam nada de novo. Foi assim que percebi que setenta, embora na altura estivesse convencida que eram noventa, em cada cem católicos não queria saber de deus para nada. E isso coincidiu ou causou, nunca descobri, o glorioso período que mencionei acima.
A minha entrada no ateísmo foi causada uma amálgama de acontecimentos angustiantes que culminou comigo a cortar o cabelo á rapaz de uma forma desastrosa que me fez ficar conhecida como “Elvis”. E de repente percebi que o espaço na minha cabeça não era ninguém, era só eu. O período que se seguiu foi ainda pior, andei ainda mais á porrada, as minhas notas desceram mais, discuti ainda mais com a minha mãe e principalmente, senti-me muito mais sozinha. Porque o meu ateísmo não era saudável, não aceitava os seres humanos como sendo a única coisa que importava, de facto foi nessa altura que criei uma carapaça de cepticismo, palavrões e silêncio de que ainda hoje tenho dificuldades em me livrar. Tornei-me naquilo que detestava, nunca pensava em nada além das coisas insignificantes na minha vida e achava-me a pessoa mais infeliz do mundo. Isto irritava as pessoas á minha volta que acabavam por implicarem ainda mais comigo, porque eu tinha uns pais que me amavam e uma boa situação financeira, que mais queria eu?
A minha sanidade mental regenerou-se tão lentamente como o meu cabelo. Deixei de me importar com o que os outros pensavam (foi um dos mais importantes progressos e devo dizer que, por muito difícil que seja admitir, este se deveu á carapaça acima mencionada), deixei de discutir tanto com a minha mãe e comecei a interessar-me outra vez pelas coisas. Dentro deste período redescobri quem eu era, recomecei a ler (coisa que sempre adorara fazer em miúda mas que abandonara na pré-adolescência), arranjei uma forma de ter boas notas a todas as aulas sem ter de me esforçar e sentia-me satisfeita com a minha vida. Até comecei, embora quase que “ás escondidas” a admitir que não tinha que ser uma completa troglodita para ter algum valor. Estranhamente, nestes anos o meu ateísmo só se entranhara e eu estava plenamente convencida da não-existência de deus.
Há pouco tempo li um texto sobre deus por um ateu convicto, eram um texto bonito e bem escrito e tinha a particularidade (estranha no texto de um ateu) de não ofender ninguém. Falava sobre a morte de deus, sobre como crescera com ele e de repente não estava lá, que devia ter morrido de velhice ou assim. Comigo não foi assim que as coisas se passaram, o meu deus morreu num acidente de carro devido ás más condições da estrada, não foi assassinado por outro ser humano mas também não se limitou a desaparecer sem uma explosão.
Quando comecei a admitir que me importava o suficiente com a questão para me dedicar a ela fiz as minhas próprias conclusões acerca de deus e da religião. Todas as religiões continham mensagens de amor e piedade, todas elas podiam ser distorcidas até se tornarem ideologias odiosas. Respeitava-as a todas desde que se respeitassem umas ás outras e que respeitassem o meu direito de não ter nenhuma. Nem todas podiam estar certas, portanto, á excepção das mensagens de solidariedade, parti do princípio que de resto estavam todas erradas. Só este Verão, depois de ler as teorias de alguns filósofos gregos li algures sobre um filósofo que acreditava que deus era, ele próprio, o mundo, que estava dentro de todas as pessoas, de todos os animais e de todas as plantas.
Para mim, esse é deus, ele está aqui comigo, tal como está com alguns dos mais convictos ateus porque para mim deus é só uma metáfora criada pela humanidade para uma qualquer parte inacessível de nós mesmos ou até para este poderoso movimento a que chamamos natureza. Sou agnóstica, descobri isso numa altura em que não me detestava o suficiente para querer dar um nome comum a mim mesma. Mas francamente, já não é uma questão que me deixe angustiada, nunca deixarei de pensar nisso mas tenho a certeza de que se ele existe, está perfeitamente satisfeito comigo, porque eu estou perfeitamente satisfeita comigo mesma. O fantasma de deus caminha comigo e a liberdade de estar no limbo, de não ter de escolher um lado, faz-me pensar que tenho finalmente um mundo maravilhoso, cheio de possibilidades, à minha volta.
Verónica
Verónica
3 comentários:
Muito bom! Gostei! Dá também para refletir...
;)
Uau. Muito bem!
Bem, está espectacular! És a maior!
Enviar um comentário