No
início do nono ano a minha turma teve uma nova aluna. Chamava-se Lua* e era
alta, linda, atlética e virtuosa. Céus, nós odiávamo-la.
Não era que ela fosse simplesmente
bonita, ela era linda, tinha a altura perfeita, o peito grande em oposição ao
corpo magro, o cabelo castanho claro até á cintura e aquela cor de olhos ambarina,
entre o verde e o castanho, quase amarelada que superava todas as outras cores
e as fazia envergonhar-se da sua simplicidade. Era por isso que todas a odiávamos,
porque ela era tudo o que a sociedade á nossa volta afirmava que devíamos ser.
Teria sido muito mais fácil se ela não soubesse desenhar tão bem, tão bem que a
nossa professora de EV a preferia acima de todos os restantes alunos e lhe dedicava
um carinho especial. Podia até ter sido suportável se ela não tivesse encantado
os espectadores do Sarau de Natal, quando tocou piano para acompanhar os poemas
que o rebanho constituído pela minha turma recitou, se os olhos do público não
se tivessem fixado na seda macia do cabelo dela em vez de nos nossos olhos
indiferentes ao ler poesia que para nós nada significava podíamos ter aceitado
a chegada dela.
E
que chegada essa! No primeiro dia do ano, da primeira vez que a vi, bronzeada,
de roupa florida e cintilante apercebi-me, e penso que não fui a única, que ela
não era uma de nós. Para mim, as raparigas e rapazes do colégio sempre tiveram
uma constituição especial, débil, frágil, peculiar, de certo modo até doentia.
Ela não era assim, era musculada e sólida, cada uma das suas feições irradiava saúde
e alegria e até a maneira como se apresentou, como vociferou aquele nome, Lua,
três letras apenas, sempre sem parar de sorrir e de erguer os olhos místicos
para o interlocutor era diferente da nossa arrogância contida.
Apesar
de tudo, apesar de tudo isso, penso que até tive sorte. Ela era mais bonita,
mais talentosa, mais atlética e infinitamente mais simpática do que eu mas eu
escrevia melhor. Lembro-me de uma aula em que, depois de a Lua ter lido um
texto mediano eu apresentei o meu e, embora reconheça agora que a história não
mereceu os elogios que acarretou, esse incidente garantiu-me que ela não era melhor
do que eu em tudo. Eu não perdera a minha identidade, ainda tinha o meu talento
particular, aquilo que tornava única.
Infelizmente, isso não
aconteceu com todas nós e que melhor exemplo disso do que o incidente do
balneário? Havia uma rapariga que eu conhecia desde o quinto ano, uma rapariga
chamada Purpurina*, com a qual a minha relação complicada merecia um texto
autónomo e, por esse mesmo motivo, não vou falar dela mais do que o necessário.
O único facto que é realmente necessário saber acerca dela é que era uma
galdéria. Não julguem que estou a ser cruel, posso apenas imaginar os motivos
que a fariam comportar-se dessa maneira, de facto, nem sequer sei até que ponto
ser uma galdéria é realmente moralmente condenável mas a verdade é que esse era
o seu traço mais óbvio. Portanto, as tardes antes de Educação Física, quando
ela mostrava as fotografias eróticas que uns falhados lhe enviavam, eram os
momentos de glória dela, os seus 15 minutos de fama. O falhado desta semana era
um rapaz normal, nem sequer particularmente atraente, só um miúdo:
-Já olhas-te bem para este
corpo, ele não é mesmo bom?
-Achas
isso um bom corpo? – Disse a Lua antes de mostrar uma fotografia de um rapaz
musculado, esse sim, realmente atraente, que conhecera no ginásio.
Escusado será dizer que a Purpurina
nunca mais conseguiu manter a ilusão de a suportar. Raramente a criticava, até
porque isso não era possível, não havia nada para criticar, limitava-se simplesmente
a gozar com a voz da Lua e a encolher sarcasticamente os ombros cada vez que o
nome dela era mencionado. Claro que o facto de o Gato, o namorado da Purpurina
estar sempre a admirar e assediar a Lua (eu estou convencida que ele estava apenas
a tentar assegurar a sua sexualidade ao mundo, especialmente a ele próprio,
embora não considere que tenha feito um trabalho brilhante) não ajudou a
melhorar a relação. Nunca ocorreu á Purpurina que a Lua não podia querer saber
menos do namorado dela e que o Gato fazia aquelas coisas em parte para fazer ciúmes
á namorada infiel que, homossexual ou não, ele adorava.
Quanto
ás minhas próprias experiências com a Lua, nunca encontrei uma única razão
lógica para a odiar, Ela nunca foi menos do que amorosa comigo. Nem uma palavra
fria, nem um ato mesquinho, nem nenhuma daquelas maldades involuntárias características
da raça humana, nada. Ajudava-me em Educação Física e cantava Whitney Houston
comigo nas traseiras da escola, sem vergonha daquela musica tão diferente das
melodias baratas da cidade Fm que a generalidade das raparigas da minha turma ouviam
(calorosamente denominada pelos rapazes da nossa turma de “música de gaja”).
Mas,
na realidade, só tive uma conversa honesta com ela a poucos dias do fim do ano,
sentada nas escadas das traseiras, com o sol a bater-me na cara e um sentimento
precoce de nostalgia, como se já tivesse passado por tudo aquilo, há muito
tempo, numa outra vida. Foi nessa conversa, descontraída, despretensiosa e
interessante que descobri que a Lua fazia parte, juntamente com a minha colega
Azul e as respetivas famílias de cada uma, numa seita que cria na existência do
diabo e da reencarnação, que tinha estado, durante a infância, tão obcecada com
a possibilidade de ser raptada que se recusava a sair de casa quando não
escoltada por um carro e coberta de casacos e que nunca usava camisolas de
manga cavada porque odiava os seus ossudos, longos e perfeitos braços. Mas
acima de tudo, descobri algo que fez com que a identificasse comigo. A Lua
queria pintar, era tudo aquilo que queria para o futuro dela mas a insegurança
acerca de ser ou não talentosa o suficiente fizera com que declarasse á família
o desejo de seguir a arquitetura como profissão, o que a desagradava
profundamente. Percebi nesse momento que a Lua, que era melhor do que todos a
tudo, tinha medo de não ser boa o suficiente na única coisa que realmente lhe
interessava e que isso estava a corroê-la. A Lua era estranha, insegura,
frustrada, bela e fascinante como qualquer outro ser humano e torna-la perfeita
era tão insultuoso e prejudicial para mim como para ela, para ela porque não se
pode compreender e ajudar alguém enquanto os consideramos anjos de uma dimensão
diferente e para mim porque a ideia de me compara a alguém, alguém com os seus
próprios traumas, falhas e talentos é por si só ridícula e autodestrutiva.
Não estou a dizer que nunca
mais me vou sentir insegura perto de uma rapariga que pareça ultrapassar-me em
tudo mas penso que depois de conhecer a Lua, depois de conhecer a rapariga de
carne e osso por detrás da máscara de perfeição, não me vou lembrar dela como a
deusa bidimensional e inexistente do primeiro dia de aulas mas sim como a
rapariga doce, insegura e amorosa daquela tarde de Verão em que percebi que não
estou sozinha no mundo.
*Todos os nomes foram alterados para proteger os inocentes, especialmente a minha pessoa.
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