domingo, 29 de abril de 2012

O Lado negro da Lua


No início do nono ano a minha turma teve uma nova aluna. Chamava-se Lua* e era alta, linda, atlética e virtuosa. Céus, nós odiávamo-la.

            Não era que ela fosse simplesmente bonita, ela era linda, tinha a altura perfeita, o peito grande em oposição ao corpo magro, o cabelo castanho claro até á cintura e aquela cor de olhos ambarina, entre o verde e o castanho, quase amarelada que superava todas as outras cores e as fazia envergonhar-se da sua simplicidade. Era por isso que todas a odiávamos, porque ela era tudo o que a sociedade á nossa volta afirmava que devíamos ser. Teria sido muito mais fácil se ela não soubesse desenhar tão bem, tão bem que a nossa professora de EV a preferia acima de todos os restantes alunos e lhe dedicava um carinho especial. Podia até ter sido suportável se ela não tivesse encantado os espectadores do Sarau de Natal, quando tocou piano para acompanhar os poemas que o rebanho constituído pela minha turma recitou, se os olhos do público não se tivessem fixado na seda macia do cabelo dela em vez de nos nossos olhos indiferentes ao ler poesia que para nós nada significava podíamos ter aceitado a chegada dela.

E que chegada essa! No primeiro dia do ano, da primeira vez que a vi, bronzeada, de roupa florida e cintilante apercebi-me, e penso que não fui a única, que ela não era uma de nós. Para mim, as raparigas e rapazes do colégio sempre tiveram uma constituição especial, débil, frágil, peculiar, de certo modo até doentia. Ela não era assim, era musculada e sólida, cada uma das suas feições irradiava saúde e alegria e até a maneira como se apresentou, como vociferou aquele nome, Lua, três letras apenas, sempre sem parar de sorrir e de erguer os olhos místicos para o interlocutor era diferente da nossa arrogância contida.

Apesar de tudo, apesar de tudo isso, penso que até tive sorte. Ela era mais bonita, mais talentosa, mais atlética e infinitamente mais simpática do que eu mas eu escrevia melhor. Lembro-me de uma aula em que, depois de a Lua ter lido um texto mediano eu apresentei o meu e, embora reconheça agora que a história não mereceu os elogios que acarretou, esse incidente garantiu-me que ela não era melhor do que eu em tudo. Eu não perdera a minha identidade, ainda tinha o meu talento particular, aquilo que tornava única.

Infelizmente, isso não aconteceu com todas nós e que melhor exemplo disso do que o incidente do balneário? Havia uma rapariga que eu conhecia desde o quinto ano, uma rapariga chamada Purpurina*, com a qual a minha relação complicada merecia um texto autónomo e, por esse mesmo motivo, não vou falar dela mais do que o necessário. O único facto que é realmente necessário saber acerca dela é que era uma galdéria. Não julguem que estou a ser cruel, posso apenas imaginar os motivos que a fariam comportar-se dessa maneira, de facto, nem sequer sei até que ponto ser uma galdéria é realmente moralmente condenável mas a verdade é que esse era o seu traço mais óbvio. Portanto, as tardes antes de Educação Física, quando ela mostrava as fotografias eróticas que uns falhados lhe enviavam, eram os momentos de glória dela, os seus 15 minutos de fama. O falhado desta semana era um rapaz normal, nem sequer particularmente atraente, só um miúdo:

-Já olhas-te bem para este corpo, ele não é mesmo bom?

-Achas isso um bom corpo? – Disse a Lua antes de mostrar uma fotografia de um rapaz musculado, esse sim, realmente atraente, que conhecera no ginásio.

            Escusado será dizer que a Purpurina nunca mais conseguiu manter a ilusão de a suportar. Raramente a criticava, até porque isso não era possível, não havia nada para criticar, limitava-se simplesmente a gozar com a voz da Lua e a encolher sarcasticamente os ombros cada vez que o nome dela era mencionado. Claro que o facto de o Gato, o namorado da Purpurina estar sempre a admirar e assediar a Lua (eu estou convencida que ele estava apenas a tentar assegurar a sua sexualidade ao mundo, especialmente a ele próprio, embora não considere que tenha feito um trabalho brilhante) não ajudou a melhorar a relação. Nunca ocorreu á Purpurina que a Lua não podia querer saber menos do namorado dela e que o Gato fazia aquelas coisas em parte para fazer ciúmes á namorada infiel que, homossexual ou não, ele adorava.

Quanto ás minhas próprias experiências com a Lua, nunca encontrei uma única razão lógica para a odiar, Ela nunca foi menos do que amorosa comigo. Nem uma palavra fria, nem um ato mesquinho, nem nenhuma daquelas maldades involuntárias características da raça humana, nada. Ajudava-me em Educação Física e cantava Whitney Houston comigo nas traseiras da escola, sem vergonha daquela musica tão diferente das melodias baratas da cidade Fm que a generalidade das raparigas da minha turma ouviam (calorosamente denominada pelos rapazes da nossa turma de “música de gaja”).

Mas, na realidade, só tive uma conversa honesta com ela a poucos dias do fim do ano, sentada nas escadas das traseiras, com o sol a bater-me na cara e um sentimento precoce de nostalgia, como se já tivesse passado por tudo aquilo, há muito tempo, numa outra vida. Foi nessa conversa, descontraída, despretensiosa e interessante que descobri que a Lua fazia parte, juntamente com a minha colega Azul e as respetivas famílias de cada uma, numa seita que cria na existência do diabo e da reencarnação, que tinha estado, durante a infância, tão obcecada com a possibilidade de ser raptada que se recusava a sair de casa quando não escoltada por um carro e coberta de casacos e que nunca usava camisolas de manga cavada porque odiava os seus ossudos, longos e perfeitos braços. Mas acima de tudo, descobri algo que fez com que a identificasse comigo. A Lua queria pintar, era tudo aquilo que queria para o futuro dela mas a insegurança acerca de ser ou não talentosa o suficiente fizera com que declarasse á família o desejo de seguir a arquitetura como profissão, o que a desagradava profundamente. Percebi nesse momento que a Lua, que era melhor do que todos a tudo, tinha medo de não ser boa o suficiente na única coisa que realmente lhe interessava e que isso estava a corroê-la. A Lua era estranha, insegura, frustrada, bela e fascinante como qualquer outro ser humano e torna-la perfeita era tão insultuoso e prejudicial para mim como para ela, para ela porque não se pode compreender e ajudar alguém enquanto os consideramos anjos de uma dimensão diferente e para mim porque a ideia de me compara a alguém, alguém com os seus próprios traumas, falhas e talentos é por si só ridícula e autodestrutiva.

Não estou a dizer que nunca mais me vou sentir insegura perto de uma rapariga que pareça ultrapassar-me em tudo mas penso que depois de conhecer a Lua, depois de conhecer a rapariga de carne e osso por detrás da máscara de perfeição, não me vou lembrar dela como a deusa bidimensional e inexistente do primeiro dia de aulas mas sim como a rapariga doce, insegura e amorosa daquela tarde de Verão em que percebi que não estou sozinha no mundo.
*Todos os nomes foram alterados para proteger os inocentes, especialmente a minha pessoa.

                                                                               

                                                                   Verónica

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